quarta-feira, junho 06, 2007

Conto sobre a solidão: Dário.

Acordou a horas, como sempre. Sete da manhã e chove lá fora. Levanta-se quase sem abrir os olhos e sem acender a luz. Calça as pantufas nos pés errados e bocejando vai até à cozinha. Sal, em vez de açúcar, no café- É o costume. Já nem se dá conta. Duche de água fria. Voltara a esquecer-se de pagar a conta do gás.
Sai de casa. Sete e quarenta e cinco. Abre o guarda-chuva e desce a rua, mergulhado em sonhos. Sonhos esses que nem sabia que era capaz de sonhar. Comboio das sete e cinquenta e seis. Procura um lugar para se sentar. Sozinho.
-Próxima paragem: São Pedro do Estoril.
Nada de novo no jornal. Demora 6 paragens a resolver o sudoku, apesar deste estar identificado como "fácil". Em Algés, uma jovem de longos cabelos ruivos e um olhar extremamente misterioso... ou talvez ensonado... senta-se no banco ao lado. Boss Deep Red é o cheiro. Odiava-o. Doce de mais, achava. Não lhe falou. Nunca tivera jeito para meter conversa. No entanto, vontade não lhe faltou.
Cais do Sodré. Atropelado por dezenas de pessoas apressadas, sai do comboio. Metro, eléctrico...
Nove da manhã. Já não chove. Elevador. Secretária, arrumada do dia anterior. Cartas, contas, telefonemas...
Às dez para as dez fuma o primeiro cigarro. Lucky Strike.
Almoça às duas horas. Sopa de legumes e panados de porco, sentado no canto do café ao lado da janela.
Às três da tarde volta para a secretária. Mais contas, mais cartas, mais telefonemas...
Volta para casa no comboio das seis e quarenta e um. Vai dormitando no assento até S.João, a sua paragem.
Voltara a chover. Abre o seu guarda-chuva...
Lá está ela! A ruiva de cabelos compridos que vira de manhã, sentada num banco de estação a ler um livro. Não a viu. Seguiu o seu caminho, subindo a rua pensativo. A pensar sobre nada. Ou sobre tudo.
Em casa às sete e meia.
Aquece, no microondas, o jantar. Uma daquelas caixinhas de massas instantâneas. Come a ver o telejornal.
Antes de dormir, lê na cama um livro. "Cem anos de Solidão" de Garcia Marquez.
Na pag.91 é interrompido por um telefonema.
-Estou sim.
-Miguel?
-Não. O meu nome é Dário.
-Desculpe, então. É engano.
Com isto adormece. Sozinho. Sempre sozinho. Talvez por mais cem anos.

4 comentários:

Simão Miranda disse...

Adorei!
Arrisco-me a dizer que foi o melhor texto teu que já li

Sofia disse...

E se o Dário escrevesse um Diário? Devia ser monótono, não? Aposto que haveria um dia do ano em que iam entregar-lhe uma pizza, mas que não era para ele.
(sou parva, nada de mais grave)

Gaius disse...

Adorei...Simplesmente! Adoro a solidão do homem, tirava apenas a rotina. Os teus passeios surtiram efeito!

Luís Lobão disse...

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